Deambulação …em 2020
Cesário Verde foi o poeta do real objetivo, da captação das sensações transfigurando-as em poesia.
Com o seu perspicaz olhar, percorria a cidade ou o campo e pintava com palavras paisagens bucólicas ou perturbantes, sem deixar de projetar o seu sentir nessa experiência de deambulação.
Aprendemos com ele que a realidade, sendo verdadeira, inspira e perturba, sugestiona ou angustia, conforme os olhos que a olham, conforme o espírito de quem a vive.
Desafiámos os nosso alunos a deambular pela sua cidade e a projetar o seu olhar pelo caminho percorrido entre a escola e o lar.
E o resultado foi este conjunto de textos, tão expressivos quanto encantadores, reflexo de escritas que se vão apurando e reinventando.
Professora Luísa Lourenço
O sono encontra-se no seu estado mais profundo…. É lá ao longe que ouço um som perturbador, o anunciar de um novo dia. “Já?”, penso.
Acordo exaltado.
As paredes de casa sussurram todas uma palavra: “despacha-te”. O relógio é cruel e não anda a meu favor. As mil e uma coisas que deviam ter sido feitas na véspera riem-se de mim enquanto assistem àquele triste espetáculo. Afinal, a mochila não estava feita, a roupa não estava pronta, a mesa não estava posta, o pão não estava descongelado, não havia leite no frigorífico, a carteira não estava na mochila, o telemóvel não estava à vista, e a máscara? Onde é que pus o raio da máscara?
Aqueles infernais trinta minutos nunca mais acabam. Já nem me lembro em que dia da semana estou, mas saio de casa, finalmente.
As nuvens estão idênticas às do dia anterior, o céu parcialmente enevoado e a luz gelada da manhã quase me ataca a vista. É então que começa a viagem.
Viro à direita em direção à estrada nacional. Passo pelo famosíssimo “Túlipa”, o café está cheio e ainda só são oito e vinte da manhã. Consigo imaginar o cheiro do tabaco entranhado naquelas paredes e o aroma da cerveja que sai dos copos. Na esplanada, fala-se alto, certamente sobre futebol ou outro assunto de igual importância. Do outro lado da estrada, à sombra da oliveira e sempre com mesma a expressão facial, descansa o vizinho António e o seu velho chapéu. Está sempre apático, pensativo… (“deve ser do chapéu, concluo), mas cumprimenta-me todos os dias com a mesma alegria e conforto.
Deixo a minha rua. Até chegar à escola não há nada de grande interesse para ver. As estradas são todas retas e iguais entre si. Aproveito aquele momento para parar e descansar até que o provocador rádio me interpela displicentemente: “SÃO OITO HORAS E MEIA DA MANHÃ EM PORTUGAL CONTINENTAL, SETE NOS AÇORES”. Foram os melhores vinte segundos da minha manhã.
“Para variar estás em cima da hora, não é Petiz?” Nada de novo.
Entro a correr pelo portão da escola enquanto soa aquela maldita campainha. “Uff, cheguei a tempo.” Nem precisei de entrar na sala para prever a cara de desalento e de infelicidade dos meus vinte e cinco colegas, já sentados nas suas mesas. “Completamente espectável, no final de contas, são oito e meia da manhã.”
O resto das aulas flui calmamente até ao toque final, este mais animador. Ao fim do dia, dirijo-me a casa cansado.
Finalmente chego á minha rua. Tudo está igual.
O vizinho António e o seu chapéu estão exatamente no mesmo sítio, mas a sombra da oliveira desapareceu.
Nuno Tavares, nº 21, 12º C