É um excelente sinal ver a sociedade empenhada neste debate da recuperação das aprendizagens e acima de tudo a preocupação com as diferenças sociais no acesso à educação e cultura que começam obviamente na família. Mas importa chamar a este debate o papel da Escola e de como vamos repensar as “comunidades educativas”, mantendo os alicerces nos valores que nos trouxeram até aqui, como sociedade democrática.
Infelizmente, há demasiado ruído e importa clarificar este diálogo para que profissionais, académicos e sociedade em geral falem a mesma linguagem: recuperar não quer dizer voltar a abordar os conteúdos de um ano ou simplesmente sedimentar aprendizagens; o plano não precisa de ser igual em todo o país, em todas as escolas e para todos os alunos e famílias; a recuperação não pode ser feita em 5 semanas ou descontextualizada, é um processo a longo prazo (até 2023); os recursos necessários não precisam de ser todos extra, há uma grande margem de rentabilização das estruturas e profissionais existentes, sobretudo é crucial autonomia local na decisão de caminhos.
As preocupações que importam:
- Dar ferramentas às escolas e professores que permitam um diagnóstico e foco na intervenção onde ela faz falta. Isto pode passar pelo reforço do caminho na avaliação formativa que várias escolas já iniciaram no âmbito do projeto MAIA, ou seja “partir dos conhecimentos base dos alunos” para construir aprendizagens, mas pode passar por um papel diferente do IAVE e uma nova abordagem às provas de aferição que deveriam ser aplicadas e utilizadas ao ritmo de cada escola, idealmente em meios digitais que facilitassem o reporte e utilização da informação.
- As comunidades, trabalho cooperativo, colaborativo e partilha eram deficitárias e estão agravados com o distanciamento físico: importa capitalizar a experiência adquirida na comunicação digital para restabelecer a partilha, o diálogo e o debate interno saudável nas escolas.
- (Re)pensar efetivamente a escola na era digital: as ferramentas estão a chegar aos alunos, mas é preciso fazer a revolução pedagógica. Os modelos híbridos, a sala de aula invertida, o trabalho de projeto e a produção de novos media pelos alunos são uma possibilidade efetiva que importa considerar.
As questões que importa colocar em cima da mesa:
- Quais são os recursos existentes que devem ser reforçados? Como pode a biblioteca escolar voltar a ser um polo cultural e pedagógico da escola, servindo todos e, em especial, os que mais precisam? Como podem as equipas EMAEI ser mais efetivas e menos burocráticas? Como é que a nuvem e o trabalho colaborativo digital podem ajudar a servir melhor cada aluno?
- Como vamos colaborar mais e melhor? Quais os novos papéis de alunos, professores, assistentes e encarregados de educação neste era digital e neste contexto? Como manter o diálogo e debates internos? Como providenciar tempo aos profissionais para planificar, preparar, avaliar e colaborar?
- Como ajustar os modelos pedagógicos à era digital? Como fazer uma planificação das aprendizagens que rentabilize o digital? Como vão ser usados e complementados os manuais escolares? Como viver o currículo centrado nas competências transversais do Perfil dos Alunos? Como vamos diferenciar e personalizar a aprendizagem de cada aluno? Como compensar as falhas na aprendizagem ao longo dos próximos anos no contexto das novas aprendizagens (relembrando o currículo em espiral, ou seja, que se repete no tempo de forma progressivamente mais aprofundada)?
Os caminhos existentes a incentivar:
- A autonomia e decisão de cada comunidade educativa. Por exemplo, a disponibilização de meios e recursos em função das necessidades de cada escola, tal como foi realizado em agosto de 2020 pelo Plano Nacional de Promoção do Sucesso Escolar que permitiu a cada escola ter um reforço de técnicos, psicólogos, terapeutas ou outros em função dos seus projetos educativos.
- O envolvimento de mais entidades sociais na resolução dos problemas dos alunos: a escola é essencialmente um instrumento pedagógico, pelo que importam outras intervenções da sociedade junto das famílias que precisam. É importante complementar a ação da escola, com outras estruturas sociais que contribuam para resolver problemas das famílias de forma sustentável. A rede do 3.º setor instalada deve ter uma palavra a dizer e deve ter oportunidades e meios para contribuir.
Os novos caminhos e desafios:
- A autonomia nas decisões das escolas e famílias nesta “recuperação” deve ter acesso a novos recursos: os profissionais e os equipamentos são a base, mas a aquisição de programas, aplicações e desenvolvimento ajustado de soluções devem ser contempladas. Por exemplo no PNPSE na região do Minho o projeto Hypatiamat e Mais Cidadania mostraram como se podem desenvolver programas integrados com formação de docentes, mediadores nas salas de aulas e programas educativos para os alunos utilizarem. São necessários recursos financeiros paralelos para adquirir serviços na área da avaliação, dos conteúdos, da organização
- A especialização, diferenciação e valorização dos profissionais: a tradicional distribuição de serviço não consegue responder às necessidades dos diferentes alunos, nem rentabiliza o potencial de diferentes profissionais. Se a legislação por um lado preconiza uma autonomia de até 25% de gestão do currículo, a verdade é que “controla severamente” esta autonomia através de uma matriz curricular rígida e castradora, colada a uma visão estrita do cumprimento das horas letivas. Paralelamente, há um sistema de liderança das escolas demasiado centralizado e vertical, com pouca dinâmica e envolvimento. Mesmo a formação de profissionais é um sistema mais preocupado com a certificação e avaliação de desempenho do que com a evolução de cada profissional em termos efetivos. No campo da gestão de recursos humanos, seria importante os técnicos existentes serem também envolvidos em programas integrados de acompanhamento e desenvolvimento dos educadores (seria impensável uma empresa da dimensão das escolas trabalhar sem um departamento de gestão de recursos humanos pluridisciplinar). Uma possível solução existe no campo da saúde: as unidades de saúde familiar são instrumentos de autonomia na gestão dos serviços prestados à comunidade que poderiam ser um modelo para a autonomia das escolas (por exemplo até em termos de “sub-sistemas” como o ensino profissional ou educação de adultos).
- Os manuais escolares têm urgentemente que ser repensados: a adoção de um único manual para um longo período é incompatível com a diversidade metodológica, necessidade de ajuste dos conteúdos ao contexto e atualidade e até mesmo necessidades específicas de grupos de alunos. Há um sistema oneroso de produção de manuais que não é flexível o suficiente para responder às necessidades do sistema de ensino e dos seus atores. Importa pensar as plataformas de manuais digitais como um canal de distribuição, sendo que alunos e professores devem poder ter um papel mais ativo na escolha das abordagens ao longo do ano, quer em termos de diversidade metodológica, quer de recursos complementares, quer na relação com o contexto e atualidade. A reinvenção da sociedade tem que tocar diferentes domínios e o manual tem que ser mais um serviço do que um “produto acabado”.
Luís Barata