Tenho 15 anos. De casa para a escola. Da escola para casa. Depois de longo tempo preso e sozinho em casa. Diariamente percorro o caminho de ida e volta. E vagueio à volta de mim, numa turbulência que nem sei bem a geografia. Ando no 10.° ano, mascarado, como todos. Humanidades. Numa turma de 28 alunos, onde mal cabemos. O meu colega de carteira está, praticamente em cima de mim (e eu dele). Quase olhamos para o lado para que o bicho não interfira na respiração comum. Nos intervalos que foram agora reduzidos temos de ficar, a maioria das vezes, lá dentro. Que não se pode vir ao recreio, que não nos podemos misturar por causa do vírus. E que temos de seguir a carreirinha das setas. Todos em filas. Todos na distância social, agora física, mas apenas fora das salas, porque lá dentro estamos a 50 cm. E que não podemos quase falar porque temos de estar a dois metros e de máscara. Mas ao fim de oito horas, ninguém aguenta viver assim. Este é um tempo insuportável de distância e de solidão. É certo que nós queríamos regressar à escola, ao convívio dos amigos e colegas e ao contacto dos professores. Porque não aguentávamos mais a prisão da casa. Mas tem de haver limites.
Nas aulas, o professor de Filosofia diz que a educação é a alavanca do progresso social, da emancipação do homem, que é o investimento certo para o futuro, que é um “elevador social”, embora não tenha percebido bem e também ninguém perguntou. Agora o diálogo é muito mais difícil. Quase não nos entendemos com as barreiras das máscaras e a falta da expressão do rosto escondido.
E a professora de História garante que, desde a sua criação, a escola foi um instrumento de mobilidade social; que os títulos académicos democratizaram a vida e vieram substituir a estratificação de sangue. Grande invenção, a escola, disse ela. E acrescentou que o passado nos ensina que a escola é uma passagem, o tempo de preparação para a vida ativa, para o futuro risonho e feliz. Porque o saber era a base da hierarquia social. Do reconhecimento, da identidade e da afirmação. E que tínhamos de aceitar que agora tínhamos de viver, digamos, inativos em nome do futuro. E também confinados, seguir as regras, as ordens da Direcção-Geral da Saúde (DGS) se queríamos impedir o contágio do coronavírus, esse bicho maldito importado da China. E, por isso, era necessário o sacrifício, o esforço. O estar quieto, se possível sempre em casa. E aceitar, porque era para nosso bem. Nada dessas modernices da interpelação, da exigência do esclarecimento, compreensão crítica. Decorar as matérias, respeitar as regras da pontualidade, da assiduidade e do respeito pela autoridade [da DGS em primeiro lugar – até a nossa professora de História lembrou que não devíamos confundir com a DGS do tempo do fascismo, que era a sucedânea da PIDE]. E tudo isto se quiséssemos ter boas notas e entrar na universidade ou, vá lá, no politécnico. E caso se não entrasse, tentar-se ao menos um bom emprego.
E a professora de Português lembra, na aula logo a seguir, com um intervalo de cinco minutos na sala, que é preciso conhecer o narrador autodiegético e heterodiegético, os modos de expressão literária, as cantigas de escárnio e maldizer e as de amigo e de amor porque a literatura é a morada do ser, a revelação do mundo, dos outros, dos próximos mesmos mascarados. E que quando fôssemos adultos haveríamos de compreender.
Tenho 15 anos. Durante 31 horas compactas por semana recebo o saber que me promete uma vida futura, enfim liberta da maldição que parece tudo querer destruir. Ainda ontem o professor dizia que o Latim era a base da estruturação da língua, do raciocínio, e se quiséssemos um dia trabalhar em qualquer área profissional da comunicação, do direito, etc., tínhamos de aprender o Rosa, Rosae, as declinações, enfim, tudo o que é a base, a basezinha.
Procuro concentrar-me no meio dos discursos intermináveis. De vez em quando, uma aflição cresce no peito e é quase uma asfixia, mesmo literal. Ainda anteontem, quando estava sozinho em casa, o meu pai comentava com um amigo (ou foi na televisão?) que o mundo moderno esmaga o homem com a precariedade de todos os horizontes. E ainda mais agora com a pandemia que parece tudo permitir, a calamidade, a emergência, o confinamento, a miséria, a prisão. O “globalitarismo”, a deslocalização, a precarização de todos os vínculos, o desemprego massivo – ele disse. Não percebi o que ele disse, mas senti um desconforto enorme. E então fechei-me no quarto a tocar desesperadamente viola e a tentar perceber o suicídio do meu ídolo, Kurt Cobain.
Procuro concentrar-me. Os testes (agora chamados micro testes, questões aula) estão a chegar e preenchem cada vez mais tempo de vida. Dizem-me que tenho de ter um plano de trabalho, um método de estudo, se não estou tramado. Que os testes são muito importantes para medir os conhecimentos que conseguimos decorar. Procuro concentrar-me na descoberta de um plano e de um método. Procuro nos arquivos da memória esse saber e não o encontro.
Vagueio à volta de mim. Ligo o computador e na pasta do meu pai há um texto com o título “Sem tecto, entre ruínas”. Carrego no cursor e aparecem “teses sobre o sem-sentido da escola”. E vou lendo “toda a preparação escolar para a vida activa será um fracasso se a organização social e a organização do trabalho não se reorganizarem de modo a darem um sentido diferente à vida”; (…) “há uma crise estrutural de motivação nas escolas secundárias e a organização económica tem certamente a ver com isso”; (…) “se a vida ‘activa’ não oferecer perspectivas de promoção, os alunos e os professores dificilmente acreditarão no sentido da vida escolar”; (…)“viver alienado no tempo presente em troca de um tempo futuro pleno e radioso é uma mistificação insidiosa”.
De maneira que encerrei o texto e abri para um jogo de futebol. Mas logo o meu pai me chamou. Se eu não tinha de estudar. Se não tinha de me preparar para os testes de História e de Filosofia. Abri o livro Pensar a História e fui relendo a formação da sociedade senhorial e vassálica, a consolidação da ordem feudo-senhorial, os particularismos portugueses do regime senhorial e feudal: o predomínio dos grandes senhorios monásticos, o senhorialismo monárquico, etc.. Fui relendo, olhando o passado com o coração no presente. Depois peguei no livro de Filosofia e li que “o mundo alterou-se tão rapidamente que o homem tem dificuldade em acompanhar o ritmo da mudança na economia, na política, nas comunicações, nos valores e no estilo de vida”. Que “resistimos a mudar, receamos a incerteza, mas a História não pára”.
Pois. Não pára. E para onde vai? E para onde é que eu vou? E que faço eu aqui, nesta tarde cheia de sol, sozinho em casa, a mergulhar em séculos e séculos de saber? Onde poderei ler o sentido da minha adolescência, a confusão da minha respiração? Onde poderei encontrar as respostas para as minhas inquietações? Onde?
Tenho 15 anos. Tenho dez anos de escola. Esmagado pelo vazio da incerteza. Pelo tédio de não perceber. “Sem tecto, entre ruínas”.
Fonte: Público